A permanência do ‘método histórico’ em Spinoza

Um homem só, isolado, não tem direitos, pois estes são de natureza social. Mas, ao viver em comunidade, adquire direitos, e tais direitos aumentam com o poder da comunidade. E, o homem será tão mais livre, quanto mais racionalmente agir na sociedade. Mas, para  compreender o homem é preciso enxergar toda sua extensão, e uma delas é sua História, porque é lá – que…verdadeiramente… ele se encontra… realizando-a … e modificando-a.

Francisco Alcântara Nogueira nasceu em Iguatu – Ceará, no dia 15 de abril de 1918…e faleceu em Fortaleza, a 26 de março de 1989. – Numa época em que educação era um privilégio … foi, em 1935 ao Rio de Janeiro… concluir sua educação superior… onde logrou bacharelar-se em Direito… na antiga ‘Faculdade Nacional do Brasil’…hoje UFRJ… – na Praia Vermelha… Urca.  Adepto do “racionalismo crítico“, encarnou a figura do livre-pensador, rumo à verdade, em sua vida & obra.

Alcântara Nogueira viveu no Rio de Janeiro por cerca de 20 anos, onde conheceu o ilustre conterrâneo Clóvis Beviláqua, de quem se tornou grande amigo… Retornando a Fortaleza, em 1963 – ingressou como professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), e na Faculdade de Filosofia do Ceará (hoje “Centro de Humanidades”)…Até sua morte, em 1989, publicou, entre vários artigos e livros… “Opúsculo de Filosofia”, com dissertações sobre o pensamento de Spinoza… “Spinoza e Descartes”… “Das paixões, e da moral segundo Spinoza”, “Deus na concepção de Spinoza”, “Tratado de filosofia racional”, “O método racionalista-histórico em Spinoza” – na edição comemorativa… dos 300 anos de morte de Spinoza…e “Poder e Humanismo”, relacionando Spinoza, Feuerbach e Marx.

Antes de falecer, em 26 de março de 1989, Alcântara Nogueira comunicou através de    um bilhete, que tinha enviado para a Editora Forense no Rio de Janeiro o original do  seu (último) livro… – “Direito…origem e evolução” – prefaciado…pelo grande jurista cearense Paulo Bonavides. – Infelizmente, até hoje…(2011), o livro não foi publicado. 

albert_einstein_fraseSobre suas ideias – desde seus primeiros anos de juventude — Alcântara Nogueira tentou estruturar seu pensamento — por meio do estudo das… “ciências naturais”. Influenciaram seu ‘pensamento’ … desde Lamarck, Darwin, Mendel, Huxley — até influências outras… — como Farias Brito (filósofo cearense)… e, os pré-socráticos, como Parmênides, Heráclito, Demócrito, além do revolucionário Giordano Bruno,    e do mestre Spinoza, seu grande mentor.

A influência decisiva de Spinoza, veio no seu tratado de filosofia racional…“O Universo”. Após a sua elaboração…as ideias do filósofo cearense começaram a ser atraídas por uma visão política da realidade. A Metafísica de Spinoza servia de ‘arcabouço’ a novas ideias, que procuravam levar o Homem para um caminho de libertação…não apenas mental ou intelectual, mas também social…conduzindo-o a uma posição contrária à exploração do homem pelo homem. – Daí, dirige-se então ao “socialismo“…mas rejeitando o chamado comunismo ortodoxo stalinista – com sua ditadura partidária…e, culto à personalidade.  Para isto, cita uma passagem de Marx em apoio a sua opinião, cujo artigo, publicado na “Revista Comunista”, em setembro de 1874… quando já havia se afastado de Feuerbach, foi descoberto… – e reeditado por Karl Grünberg em 1921… – O artigo começava assim:

“Nós outros não somos comunistas que renegam a liberdade pessoal e querem fazer do mundo um grande quartel de trabalhos forçados… É certo que existem comunistas que renegam a liberdade pessoal… — porque consideram que esta obstaculiza a harmonia; entretanto, nós outros não desejamos conquistar a igualdade a expensas da liberdade”.

Isto significa que Marx não era partidário de se implantar o socialismo a qualquer preço, sacrificando a liberdade. – O próprio Lênin dizia… em 18 de janeiro de 1914, que não era partidário de se implantar o socialismo pela imposição, contra a vontade do povo… – No entanto, após assumir o poder em 1917… gradativamente foi mudando de opinião – pois considerava a Rússia uma fortaleza sitiada… — “dentro da qual, nenhuma oposição…por mais frágil que fosse, podia ser tolerada” (Isaac Deutscher “O Profeta desarmado” 1984).

Alcântara Nogueira portanto, era um marxista não ortodoxo. Aceitava algumas teses marxistas – como a origem social das ideias… mas, rejeitava o catecismo bolchevista unipartidário, com opressão e repressão à liberdade…características do “comunismo    real”…tanto soviético (Stalinista), como chinês (Maoista)…ou de qualquer outro tipo.

“O MÉTODO RACIONALISTA-HISTÓRICO EM SPINOZA”                                                        ‘Em Spinoza, o homem está rigorosamente inserido na sociedade                                            como “ser objetivo”, realizando…na prática, sua própria História’.

Seu trabalho de maior relevância… na opinião do próprio Autor é seu livro “O método racionalista-histórico em Spinoza”… – prefaciado por Miguel Reale e publicado em 1976… obra comemorativa dos… — trezentos anos… — da morte de Spinoza. Nela, Alcântara, além de determinar as raízes do pensamento do filósofo holandês, defende a tese de que o racionalismo de Spinoza não foi “puro”, do tipo cartesiano ou clássico, mas um híbrido… “racionalismo realista”…dinâmico, histórico… e, por vezes…também dialético. – O grande jurista brasileiro, e ministro do ‘Trabalho e Previdência Social’…do gabinete parlamentarista do governo João Goulart, Hermes Lima, amigo de Alcântara Nogueira – escreveu um breve artigo…sobre seu livro. Além disso, lhe dirigiu uma carta…de 8 de outubro de 1976…a qual, reproduzimos a seguir:

“É um livro (O Método Racionalista-Histórico em Spinoza) maduro, denso, em que você, estudando o método histórico-racionalista de Spinoza, contrasta sua interpretação…a de outras autoridades…para chegar à conclusão, que no filósofo, a ‘historicidade da razão’ é por ele conhecida e proclamada… – Nesse sentido…os dois capítulos finais são decisivos. De fato, o estado de natureza no homem dotou-o de um equipamento biológico-psíquico que o estado social desenvolve, condiciona…e, até dirige; mas constitui o dado primitivo com que ele entra na sociedade…Você mostra que Spinoza viu isso com absoluta certeza.  E esta é a novidade de seu livro. De sua análise do método do filósofo, o caminho da sua racionalidade. Assim, diz você muito bem, o homem conserva no seu estado social certa parte do estado de natureza. Aí meu caro Alcântara, a gente poderia dizer que o homem     é natural e construído. – Bem… o livro é seu título de cidadania na cidade dos filósofos”. [Hermes Lima]

Spinoza, há mais de 200 anos, é considerado…na História do Pensamento, um panteísta imanente que adotou o método racionalista clássico na construção de seu sistema. Isto é afirmado pela quase totalidade de seus intérpretes… – Para eles, o panteísmo spinozista teria raízes diversas… na filosofia grega, no pensamento renascentista (‘Neoplatonismo’)   e, principalmente no judaísmo. – Além dessas raízes, cita-se Descartes – de quem se diz que Spinoza sofreu profundas influências… – e de quem tirou seu “método racionalista”.

CAPÍTULO I: “UNIDADE DE VIDA E PENSAMENTO EM SPINOZA”

Tudo isto era tido e aceito há mais de 200 anos. – Porém, o livro do pensador cearense, além de mostrar o verdadeiro sentido do racionalismo spinoziano, ainda discute várias afirmações tradicionais imputadas ao filósofo holandês, demonstrando em que sentido   são exatas ou falsas. E tudo isso…com autonomia, riqueza de documentação e erudição,   ao invés de se limitar a dizer amém aos intérpretes tradicionais…A tese central do livro afirma que o racionalismo de Spinoza não é “puramente formal”…como o de Descartes, mas é “historicista”, e concebe o homem como um ‘ser social‘… O “método racionalista spinoziano” é dinâmico…meio dialético, ligado à realidade do mundo; seu pensamento historicista…não separado da existência concreta do homem, não se perde numa razão acabada, eterna… imutável e vazia – como sempre acontece ao “racionalismo clássico”.

SpinozaEste 1º capítulo … além de uma biografia de Spinoza, é também um retrato de sua breve vida (1632-1677) mostrando, apesar de toda a perseguição por ele sofrida…uma  perfeita coerência desta, com seu pensamento. Suas ideias foram julgadas heréticas – e como se recusou a se retratar e renegar sua filosofia, foi excomungado pelos judeus. Mas…foi ele próprio quem tomou a iniciativa…Spinoza já havia aos poucos se distanciado do judaísmo, expondo abertamente suas ideias… – desde bem antes de 1656… data de sua excomunhão.

Alguns autores tentam justificar o rigor desta maldição pela sociedade da época, o que ainda é pior… pois apenas mostra que o espírito desse tempo estava contaminado pelo fanatismo, pela teocracia, cegueira…e intolerância religiosa. – E o curioso … é que isto ocorreu em plena Holanda… – país laico…na época, considerado um dos mais liberais.

Spinoza viveu conforme suas ideias… e suas ideias constituíam um sistema – uma visão  de mundo. Assim…no torvelinho das lutas e contradições, o comportamento de Spinoza não só se racionalizou, através de continuado progresso…como quase se confundiu com      a elaboração de sua filosofia. Talvez nenhum outro filósofo haja construído, como ele, a sua ideologia…colocando a investigação do espírito, em consonância à ‘realidade social’    de seu tempo em plena marcha para o futuro… que, muitas vezes…iria confirmá-la.

“CAPÍTULO II: “A AUTO-REFLEXÃO EM SPINOZA”                                                                  “Em seu sistema não há lugar para a transcendentalidade                                                          de Deus, muito menos para a criação do nada (ex nihilo)”.

Alcântara Nogueira – no 2º capítulo…procura fazer uma espécie de radiografia do          intelecto de Spinoza – para determinar-lhe o sentido…orientação, e caráter de sua          filosofia. Ao contrário do que teria dito Sócrates (platônico), para quem filosofar é aprender a morrer, Spinoza parte da afirmativa de que filosofar é aprender a viver.              É que Sócrates acreditava numa imortalidade não apenas do ente… “alma” – mas,      numa imortalidade pessoal, vivendo…em consequência, e em função desta. Como        Spinoza não aceitava uma imortalidade de caráter pessoal; rejeitou também toda      espécie de sobrenaturalidade em seu sistema. – Assim, segundo o autor…Spinoza “humanizou” o ‘pensamento filosófico’, exorcizando a “transcendência…do nada”:

baruch_spinozaCriar do “nada” significa…criar alguma coisa…que para existir, não supõe nada antes dela…a não ser Deus…Mas, Deus   e o Universo… são uma só “unidade”.

É esse dilema – ‘a rigor’… que pode explicar a dificuldade em se ajustar        ao pensamento de Spinoza, tanto a criação única (“Big Bang”), quanto    uma pluralista (dos Multiversos).

O filósofo holandês naturalizou Deus e humanizou a Natureza… – não no sentido antropomórfico, mas no sentido de rejeitar a forma de… ‘sobrenaturalismo’ – ou, transcendentalidade de um Deus, aceitando o Universo como autor de si mesmo:

“O mundo é ‘auto-subsistente’…O mundo é pai e filho de                                        si próprio. Deus e Mundo são uma só…e mesma coisa”.

Por consequência, esse naturalismo do ‘pensamento spinoziano‘ é contrário a qualquer intervenção nas leis da natureza (daí a rejeição do “milagre”, por ser contrário às leis de Deus), pois admite, como o próprio filósofo o diz…“a ordem fixa e imutável da natureza,     ou concatenação das coisas naturais”… que Spinoza chama “governo de Deus”. Por isso,     o autor resumiu em dois – os fundamentos que predominam no…”sistema spinoziano”:

1º)  o sentido naturalista, incompatível com toda e qualquer ideia de ‘sobrenaturalidade’, visa conceber o universo como uma realidade identificada com Deuspermitindo assim explicar numa equipotência, os termos essenciais da estrutura do panteísmo spinoziano;

2º)  a compreensão dessa unidadeou, o que dela decorre – através da valorização do entendimento, oferece à razão não só a condição de elemento imprescindível mas, também o instrumento que permite ver o intelecto como expressão dinâmica, capaz        de aperfeiçoamento – fundamento ao qual se prende o “método spinoziano” como a verdadeira ‘espinha dorsal’ de seu sistema…a razão fazendo progredir e se historicizar.

Spinoza não é um representante da elite burguesa da época – ou do liberalismo…eclodido no seio da burguesia dos séculos 17/18, e filiado ao ‘racionalismo clássico’…pelo contrário, Spinoza liga o poder ao povo, considerando a massa, elemento primordial na organização da sociedade política…Realça que é pelo trabalho que os homens alcançam o seu conforto.  Partidário da democracia, na forma republicana de governar, justifica isso, por uma igual natureza para todos, só se diferenciando no poder e cultura. — Considerando a “soberba”, própria de todos que dominam…defende um Conselho…com membros periodicamente eleitos (máximo 5 anos), a fim de limitar seu próprio poder ao contrário da monarquia.

Alcantara Nogueira termina este capítulo, demonstrando que o sistema de Spinoza caracteriza-se como uma filosofia … que busca a compreensão da vida em toda sua plenitude, alcançando uma ética onde o bem é tudo o que conduz à vida… – e o mal,           tudo o que leva à morte… A vida é a solução dos problemas; e não fim de todos eles.

CAPÍTULOS III E IV: “AS RAÍZES DO PENSAMENTO DE SPINOZA”                                      Não consta em nenhum documento histórico … que Spinoza possa ter                                exercido o ‘sacerdócio’…como pois, poderia fundar uma nova religião?

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“A melhor maneira de conhecer Deus é entender como a vida e o universo funcionam” (Espinoza)’

É tema por demais polêmico determinar as raízes do pensamento spinoziano…Aqui, Alcantara Nogueira discute quase tudo o que disseram quase todos os estudiosos de Spinoza – acerca dos ‘problemas e influências’ concernentes à filosofia do pensador holandês… – rejeitando…a esse respeito… o caráter místico, ou religioso de Spinoza.  Retruca o autor, que…se o objetivo de Spinoza fosse religioso – por que se colocaria      contra o judaísmo; ou não ingressou numa das várias seitas protestantes liberais da Holanda na época?… Ou ainda…por que não fundou ele próprio uma nova religião?

Tendo como base a liberdade de pensamento, Spinoza elege a natureza como poder supremo (Deus e Universo são uma mesma coisa), e aproxima o homem do próprio homem, para quem nada existe de mais útil do que seu próprio semelhante. – Deus         não é o espaço metafísico de todas as coisas, mas essência ativa, dinâmica…“Deus é             o mesmo que natureza”. – Nisto se resume o caráter de seu pensamento humanista.

Por ter sido intérprete da Bíblia, Spinoza é acusado de ser místico…Spinoza realmente foi esse intérprete, mas num sentido crítico-histórico, e não místico-religioso, como o faziam os rabinos ou quase todos os exegetas hebreus, que não perceberam o sentido naturalista-realista do filósofo de Amsterdam…cujo método visava apenas alcançar a realidade como forma de conhecimento objetivo, e não como uma forma aleatória de “sobrenaturalidade”.

Para isso, basta que se grife em Spinoza sua oposição à aceitação das profecias pelos sonhos, ou astrologia devidos à…Providência…o que para ele não tem sentido, pois          de acordo com odeterminismo naturalista‘ de SpinozaDeus é imanente‘.

Um judeu… que supostamente teria exercido enorme influência sobre Spinoza… foi Hesdai Creskas, autor de ‘Or Adonai‘ … (“Luz de Deus”).

Alcantara Nogueira admite ‘alguma influência’… por algum tempo, mas com destinos diferentes. – Creskas, diz que…de acordo com Spinoza, se fizermos uma busca de ‘causas’, até  o infinito, tudo na natureza é efeito de uma causa; portanto, nada pode existir – por sua ‘própria natureza’.

Mas Spinoza retruca, que este argumento não parte do princípio que o infinito não possa existir em ato, ou ainda que para aceitar-se a existência das coisas, ter-se-ia de recorrer a uma busca infinita – mas sim, do princípio que coisas que não podem existir por sua própria natureza, não podem existir por causa de outra que existe por si mesma. Spinoza    afasta-se de Creskas…ao aceitar a existência da substância (res) por sua própria natureza, bem como unicidade e indivisibilidade. Tal indivisibilidade, se aplica ao mundo corporal, cuja extensão é tão vasta, como um “campo contínuo de forças” que rege o espaço; o que vem negar a existência do vazio – ponto de vista que…em parte… coincide perfeitamente com a moderna “física quântica”… – pelo menos no que tange às… “flutuações de vácuo”.

Se ambos caminham juntos para rejeitar a criação “ex nihilo” (do nada)…é                            para abolir a ideia de que o nada seja capaz de gerar algo. Como já diziam                        os gregos… – “nada pode sair do nada… e nada por ser revertido ao nada”. 

O espírito de Spinoza leva em conta a devoção pela verdade para ele entre a fé (teologia) e a razão (filosofia), não há comércio ou afinidade. O milagre não existe        porque vai de encontro às leis naturais; e tudo o que é contrário à razão é absurdo.          Ele não tinha orientação mística ou religiosa…pois não aceitava arrependimento e humildade como virtudes (positivas) da religião; dizia ele que “Temor, humildade, arrependimento e esperança são usados…apenas para levar submissão aos povos”.

“Há, primeiro, o infinito, e dizer primeiro é ainda impróprio, porque o infinito produz, e produz infinitamente; e o infinito sabe que produz, e o que produz, assim como também sabe que se reproduz. Esse infinito…que produz (e se reproduz) infinitamente, se chama Deus, Substância…ou Natureza”. (Baruch Espinosa). Como se pode ver…jamais Spinosa humanizou Deus e sua existência, pois para ele… “Deus afirma-se na mesma eternidade  da Natureza. Não são 2, Deus e Natureza, mas Um, que não foi, ou serápois apenas é”.

Spinoza não era um incrédulo que acreditava na revelação, mas um defensor irresoluto  da ‘razão’. Para ele, meditar sobre a vida…é o caminho da libertação. E ele assim, liberta-se da divina transcendência. O entendimento de Deus e as coisas entendidas por Ele são uma, e mesma coisa (assemelha-se com o próprio Aristóteles, na ‘Metafísica’, ao afirmar que Deus pensa o próprio pensamento)…“Se a verdade sobre as coisas…e conhecimento dessa verdade…são coisas diferentes…e, por outro lado se Deus conhece toda verdade (com sua onisciência), então a proposição…“Deus conhece toda verdade”, se verdadeira, não está dentro do entendimento de Deus. E não estando, então é falso dizer que “Deus conhece toda verdade” E, se continuarmos nessa linha de raciocínio…dizendo que: “é verdade que Deus conhece toda a verdade” … — cairíamos em uma progressão infinita”.

Embora esse problema seja seríssimo para quem gosta de raciocinar para além do infinito, em Spinoza ele não existe – porque o filósofo holandês rejeitou a ‘transcendentalidade’ de Deus… – E fazendo isso, não houve mais separação entre Deus e as coisas, desaparecendo consequentemente o dualismo entre as coisas, e o conhecimento sobre elas, isto é, entre a verdade e o conhecimento da verdade. — Portanto, em Deus, conhecimento e verdade são uma só, e mesma unidade… — E, ainda sobre issoAlcantara Nogueira também comenta:

“Diante dessas considerações, podemos concluir dizendo que…assim como as águas de inumeráveis riosalimentadas por outras tantas correntes líquidas, das mais variadas procedências, que primeiro estiveram individualizadas… – para depois…se unificarem, indissoluvelmente, na constituição de grandes massas oceânicas, também em Spinoza,    as inspirações que teve (originárias de variadas fontes), fortemente se fundiram numa unidade de pensamento… – sem mais se confundir com os elementos primitivos, para criar… – numa formulação completa… – uma nova doutrina… – vigorosa…e…original”.

Para completarmos a imagem de Alcantara Nogueira, podemos dizer, por exemplo… que a água é composta por 2 elementos (hidrogênio e oxigênio) que em nada se parecem com ela – tendo esses elementos propriedades gasosa e inflamável…mas uma vez unidos num todo, este assume propriedade qualitativamente diferente…formando uma organicidade de nível superior. Em suma, a doutrina de Spinoza não é uma eclética colcha de retalhos, mas ‘coerente sistema original’… distinto de cada influência em particular que absorveu.

CAPÍTULO V: “RAZÃO DINÂMICA E DIALÉTICA EM SPINOZA”                                          “As coisas nos parecem absurdas quando delas só temos um conhecimento parcial; pois somos ignorantes da ordem e coerência da natureza…como um todo”. (Baruch Spinoza)

É comum de se dizer que Spinoza foi um ‘racionalista puro’, mero continuador do racionalismo cartesiano…. Racionalismo este…igual ao de iluministas dos séculos    17 e 18, ou ainda, como o de Platãoum pensamento longe da realidade concreta      e histórica então produzida pelo homem.

As ideias de Platão…de fato, antecediam ao…’mundo físico sensível’ — imperfeita projeção … no espaço-tempo observável.

Nesse ‘Ideal’… a razão é tida como algo fixo, independente do real e concreto, e incapaz de progresso. O homem não participa do progresso…do evoluir histórico. Todo progresso em verdade não é progresso do homem, ou da razão humana…mas etapas de manifestação de um Espírito ou Razão extra-mundo, no tempo e na realidade. Este é o ‘racionalismo puro’, que exige apenas condições lógicas para algo ser real. E sobre isso diz Alcântara Nogueira:

“Em todas as épocas o que se chamou de racionalismo no sentido rigoroso da expressão, procurou alcançar o conhecimento através da concepção de que o mais forte argumento estava estruturado como forma de raciocínio…que dispensava limitações condicionadas aos dados da ciência…e especialmente ao tempo, como fator crucial ao aperfeiçoamento    (e evolução) deste conhecimento. Desde que atendesse regras que não pecassem contra      a lógicao raciocínio se bastava para atingir todo saber; sendo tudo o mais, mera ajuda complementar…O raciocínio assim, não pressupunha outro instrumento, que não o seu próprio…’poder criador’…em torno do qual tudo teria que acomodar-se, ou explicar-se”.

Além de não ser um racionalista puro, Spinoza também é dialético em seu pensamento, como diz Engels, ao citar a conhecida frase…“toda determinação é uma negação”Tal afirmação está, originalmente, numa carta de Spinoza a seu amigo Jarig Jelles…datada     de Haia, 02/06/1674  “Todo ente real é limitado, e portanto, envolve negação, uma separação deste ente dos demais entes que o cercam… Quando digo ‘isto é uma árvore’, implicitamente nego que seja homem, gato, pedra, ave, etc… Por isso, não há ser finito     que não traga em si sua própria negação (no sentido de limitação determinação)“.

CAPÍTULO VI: “PROGRESSO SOCIAL E HISTORICIDADE EM SPINOZA”                            Spinoza não rompe com o ‘estado de natureza’, mas o conserva na sociedade civil, onde cada homem deve lutar por uma vantagem própria, visando sua ‘justa’ autopreservação.     

Aqui, após estudar ideias de alguns autores em relação ao “pensamento historicista” de Spinoza – Nogueira procura determinar a verdadeira natureza desta historicidade. – O racionalismo de Spinoza é nada mais do que um método de uso da razão, para alcançar        o saber – mas, sem desprezar a experiência histórica do homem… em seu todo cultural.

rousseau, locke, hobbes

Quanto à origem da sociedade civil – Spinoza não parte das doutrinas contratualistas e abstratas de um Hobbes, Locke ou Rousseau, que fazem com que os homens se tornem civilizados de um momento para outro após celebração de um alegórico contrato social. Para Spinoza, não há oposição entre ‘estado de natureza’ e ‘estado civil’, mas sim…uma continuação daquele neste. Isto é, o homem permanece na sociedade civil guiado pelos mesmos ditames egoístas com que agia no estado natural…como parte do seuconatus‘.

Como os homens – de modo geral, agem irracionalmente – existem conflitos na ‘sociedade civil’, e cada um deve defender seus interesses; mas, se agissem racionalmente, o interesse de cada umnão seria incompatível com o interesse do coletivo…  “Logo…se o estado de natureza não se define pela razão (como pretendem Hobbes, Locke e Rousseau), no estado civil verifica-se o mesmo, sendo que o direito do homem será proporcional ao maior poder que ele obtenha quando se associar aos outros homens, e portanto, maior será a sua força”.

CONCLUSÃO                                                                                                                                        

O pensamento historicista de Spinoza procura compreender o homem em todos seus aspectos… razão e ação… Sua razão cresce, com o aperfeiçoamento dos instrumentos        de ação, e estes com aquela, numa interação (ou ‘processo dialético’) que se dirige ao progresso humano. O intelecto forma seu instrumento de trabalho como acontece     com as mãos, que constroem seus utensílios. E assim, explica Spinoza esse processo:

“Assim como os homens, de início, conseguiram, ainda que com grande dificuldadee imperfeitamente fabricar com instrumentos naturais certas coisas fáceis, e estas feitas, fabricarem outras mais difíceis… – já com menos trabalho e maior perfeição… e assim, progressivamente das obras mais simples…aos instrumentos…e dos instrumentos, a outras obras e outros instrumentos … chegaram a fabricar, com pouco trabalho, coisas    tão difíceis… assim também a inteligência… pela sua força natural…fabrica para si instrumentos intelectuais com os quais ganha outras forças, para outros experimentos intelectuais” (“Tratado da reforma da inteligência” trad. Lívio Teixeira S.P. /1966).

Spinoza, com o seu método racionalista, na verdade, não rompe com o passado…com a historicidade, com a condição do gênero humano; nem apela para um racionalismo puro, logicista, que despreza a experiência. O ‘racionalismo spinoziano’ é apenas um método: o uso da razão para buscar o conhecimento…porém, sem deixar de lado o mundo prático, a historicidade do homem, e sua condição de fiel participante de um ‘todo cultural’, por ele criado. – Nestas condições, este trabalho é importante… não só pela sua independência e originalidade como também, e sobretudo … por sua contribuição ao estudo da arrojada filosofia de Spinoza…em um tempo de muitos perigos. Noé Martins de Sousa (texto base) ***********************************************************************************

MENSAGEM DE DEUS, SEGUNDO BARUCH SPINOZA                                                “A existência de algo que não podemos penetrar; a percepção da mais profunda razão,   e da radiante beleza do mundo à nossa volta – que apenas nas formas mais primitivas nos são acessíveis… é esse conhecimento/emoção que constitui a legítima religiosidade. Nesse sentido…e só nesse… sou um homem profundamente religioso”. (Albert Einstein)

BeachDreams“Pare de ficar rezando, e batendo no peito!… O que você deve fazer,  é seguir pelo mundo desfrutando  a vida. Goze, cante, divirta-se… e aproveite tudo…”feito para você”.  Pare de ir a“templos lúgubres”, obscuros e frios que você mesmo construiu, e acredita ser a minha casa!… Minha casa são os rios, os bosques, montanhas, os lagos, as praias … onde vivo, e expresso um ‘infinito’  amor por você”.

Pare de me culpar por sua vida miserável!…Nunca disse que há algo mau em você, que é um pecador ou que sua sexualidade seja algo ruim O sexo é um presente que lhe dei, e com o qual você pode expressar amor, êxtase, alegria  Pare de ler supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo! Veja-me num amanhecer, na paisagem, num olhar amigo, e deixe de me dirigir pedidos! Pare de ter medo de mim! Eu não o julgo, nem o critico, não me irrito…ou castigo. Pare de me pedir perdão! Não há nada a perdoar. Se o fiz, eu é que o enchi de paixões, limitações… de prazeres… sentimentos… necessidades e incoerências, livre-arbítrio. Como posso culpá-lo e castigá-lo por ser como é, se eu o fiz?

Esqueça qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei, que são artimanhas para manipulá-lo, para controlá-lo, que só geram culpa em você!Respeite seu próximo, e          não faça ao outro o que não queira para você!Preste atenção na sua vida!…Esta vida      não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, ou um prelúdio para o paraíso. Esta vida é só o que há aqui e agora…e só de que você precisa.

Eu o fiz absolutamente livre… Não há prêmios, nem castigos. Não há pecados, nem virtudes Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno.          Não lhe poderia dizer se há algo depois desta vida…mas posso lhe dar um conselho:        Viva como se não o houvesse, como se esta fosse sua única chance de aproveitar, de        amar, existir…Assim, se não houver nada, você terá usufruído da oportunidade que            lhe dei. E, se houver, tenha certeza de que não vou perguntar se você se comportou,            ou não. Vou perguntar se você gostou, se divertiu, do que mais gostoue aprendeu.

Pare de crer em mim! Crer é supor, adivinhar, imaginar…Eu não quero que você acredite em mim, quero que me sinta em você. Pare de louvar-me!…Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que me agradeçam…Você se sente grato? Demonstre-o cuidando da sua saúde, das suas relações – do mundo… – Expresse sua alegria!… – Esse é um jeito de me louvar.

Pare de complicar as coisas, e de repetir como papagaio o que o ensinaram sobre mim!        A única certeza é que você está aqui – que está vivo … e que este mundo é maravilhoso.      Para que precisa de mais milagres?…para que tantas explicações? Não me procure fora. Não me achará…Procure-me dentro de você. – É aí que estou…”velando por ti.” (texto) ********************************************************************************

EINSTEIN: ACREDITO NO DEUS DE SPINOZA                                                                  “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo                    o que existe… — e não, no Deus que se interessa pela sorte e ações dos homens”. 

einsteinAlbert Einstein, físico alemão de origem judaica que dispensa apresentações, quando, em 1921, perguntado          pelo rabino H. Goldstein…de New York…se acreditava          em Deus, respondeu acreditar no“Deus de Spinoza”.          Nesta mesma ocasião, o cardeal O’Connel…de Boston, publicou uma declaração onde dizia que “a teoria da relatividade encobre com um ‘manto’ – o horrível ‘fantasma do ateísmo’ – e obscurecendo especulações, produz dúvidas universais…sobre Deus e sua criação”.

Posteriormente, em uma carta escrita em Berlim a um banqueiro do Colorado, datada de  5 de agosto de 1927, Einstein explica que “não consigo conceber um Deus pessoal que influa diretamente    sobre as ações dos indivíduos…ou que julgue diretamente…criaturas por Ele criadas.      Não posso fazer isto, apesar do fato de que a causalidade mecanicista foi — até certo    ponto, posta em dúvida pela ciência moderna. Minha religiosidade consiste em uma humilde admiração pelo espírito infinitamente superior, que se revela no pouco que      nós…de posse de fraca e transitória compreensão…podemos entender da realidade”.

No artigo “Religião e Ciência”, que faz parte do livro Como vejo o mundo, publicado em alemão em 1953, Einstein diz: “todos podem atingir religião, num último grau, raramente acessível em sua pureza total. Chamo isto de ‘religiosidade cósmica’ e não posso falar dela com facilidade, pois se trata de uma noção muito nova… à qual não corresponde qualquer conceito de um Deus antropomórfico… Exemplos desta ‘religião cósmica’ são notados nos primeiros momentos da evolução, em alguns ‘Salmos de Davi’, ou em alguns profetas. Em grau infinitamente mais elevado…o budismo organiza os dados do cosmosOra, os gênios religiosos de todos os tempos se distinguiram por tal religiosidade, ante o cosmos, sem dogmas nem deus, concebido à imagem do homem…assim portanto nenhuma Igreja ensina a religião cósmica Temos também a impressão de que hereges…de todos os tempos da história humana se nutriam com esta forma superior de religião. Todavia seus contemporâneos muitas vezes os tinham por suspeitos de ateísmo – bem como…às vezes, também, de santidade. – Conforme este ponto de vista, homens como Francisco de Assis, Demócrito, Giordano Bruno…e Spinoza…dentre outros…se assemelham profundamente”.

E para concluir, no artigo “A religiosidade da pesquisa”, do mesmo livro, Einstein defende que “o espírito científico firmemente armado em seu método, não existe sem religiosidade cósmica”. Para ele a religiosidade do sábio consiste em extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza revelando uma inteligência superior a todos pensamentos humanos; tal que todo seu engenho não pode se desvendar, a não ser um nada irrisório. Tal sentimento desenvolve assim a regra dominante de sua vida (a coragem)…na medida em que supera a servidão dos…”desejos egoístas”. — Indubitavelmente, este sentimento se compara ao que animou aqueles “espíritos criadores religiosos” em todos os tempos. (texto base jun/2012)  *******************************(Diálogo Metafísico)******************************** 

Spinoza said “In nature there is nothing contingent – but all things are determined   from the necessity of the…’divine nature‘ – to exist… and act… – in a certain manner.”

Einstein conclude… “Most philosophers try to construct a philosophy of the man within nature… while Spinoza built a…philosophy of Nature … inside the man.”  *****************************************************************************

A “permanência do método”…em Spinoza                                                                        “Toda experiência histórica confirma – que não teríamos alcançado o possível,                       se acaso não tivéssemos, repetidas vezes, buscado o impossível”. (Max Weber)

Benedito (Baruch) Spinoza, filósofo holandês do século XVII… assumiu de uma forma radical o racionalismo de Descartes, desenvolvendo, através do monismo, a existência     de uma substância única formadora do Universo. Dessa forma, adota o panteísmo das religiões orientais, caracterizando universo e natureza como extensões do Ser de Deus.  Este sistema é representado pormônadas(Leibniz), substâncias simples, indivisíveis, indestrutíveis, que compõem todas coisas no cosmo…dando origem a si mesmas. Para Spinoza, a lei máxima da realidade é a “necessidade”… e tudo o que ocorre nela…se dá através de uma união de Deus com o Universo. Desse modo, o Deus de Spinoza é uma substância pela qual, tudo no Universo, ocorre de uma forma irreversível. (texto base) ****************************(texto complementar)*******************************

Perspectiva prigoginiana para uma ‘historicização’ da ciência                                  As noções de processo e estrutura, devem fazer parte da descrição física                                dos sistemas complexos da natureza como forma de não torná-la estéril.

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Em seu artigo El redescubrimiento del tempo          de 1992 — Ilya Prigogine afirmou que “a lógica          dos processos irreversíveisde sistemas longe            do equilíbrio é uma lógica narrativa”. Isto porque, segundo suas ideias o sistema longe          do equilíbrio, se desenvolve numa sucessão de ‘instabilidades’…e ‘flutuações ampliadas’ – em        um ‘diagrama de bifurcações’ — num caminho          que constitui, por assim dizer, um…”processo”.

Dessa forma, a atividade coerente que caracteriza uma…“estrutura dissipativa”              é, em si mesma…uma “ação histórica” desencadeando uma “reativação mútua”        entre os “acontecimentos locais“, e a emergência de uma…”coerência global” efetivamente integradora da multiplicidade entre essas mesmas…”histórias locais”.    Assim como nos pontos de bifurcação, ao escolher entre as várias possibilidades, o  sistema citado gera uma narrativa histórica; nesse processo, a irreversibilidade do      tempo tem um papel construtivo importantíssimo. — De acordo com Prigogine: “a irreversibilidade, associada à flecha do tempo, é um elemento crucial da existência humana, por pressupor uma diferença intrínseca entre o passado e o futuro”. Essa propriedade foi estendida à naturezaonde segundo a abordagem prigoginiana,              a quase totalidade dos fenômenos possui “irreversibilidade” – e “flecha do tempo”.

Compartilhando conceitos como assimetria temporal e caráter evolutivo…o papel criativo da irreversibilidade na flecha do tempo…impôs – no interior das chamadas…”Ciências da Natureza”, a percepção de descrevermos uma…”natureza histórica”…capaz de inovação e, desenvolvimento. Nas atividades dissipativas, com efeito, a atividade química inscreve-se na matéria, formando novas estruturas (dissipativas)… e criando moléculas capazes de se transformarem em protagonistas de novas histórias. A articulação entre Físico-Química e Biologia, “não passa de uma historicização das possibilidades físico-químicas da matéria”.

A física prigoginiana, na verdade, situa o… “tempo irreversível” – como fundamental na constituição de uma visão científica da natureza, considerando que cada ser complexo é formado por uma pluralidade de tempos…ramificados uns nos outros pelas articulações múltiplas e sutis que pode estabelecer. – Desse modo, a história… como processo de um    ‘ser vivo‘ ou de uma sociedade…nunca poderá ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo único. E, nesse sentido, o posicionamento de Prigogine é bem claro“não há ciência nem cientistas separados do processo histórico”. As “temporalidades” presentes      em todos os níveis da natureza ressaltam a historicidade como propriedade intrínseca    a esse processo…A descoberta de estruturas que podem ser físicas, químicas, biológicas, geológicas, históricas leva à percepção do processo. No caso de Prigogine…a descoberta, por exemplo, das estruturas dissipativas trouxe à tona o processo ‘evolutivo/criativo’ de  um irreversível fenômeno temporal, histórico, inscrevendo na natureza a ‘historicidade’.

fenômenos irreversíveis

De acordo com a abordagem de Prigogine, a evolução de um sistema ‘complexo e aberto’, não totalmente… ‘previsível’ representa a relação entre a ‘criatividade’ nos fenômenos naturais…e a sua sensibilidade às condições iniciais. Com isso, nos estudos dos sistemas ‘longe do equilíbrio’… os físicos perceberam que…”fenômenos irreversíveis na natureza, fundamentam a ‘ação construtiva do tempo’.

O tempo irreversível, presente nos níveis fundamentais e cosmológicos é o fio condutor da historicidade…Por sua vez, a historicidade é uma propriedade da realidade, seja qual for a realidade que nossa racionalidade subentender… – a física, a humana, a psicológica… Isso acarreta que tudo é perpassado e fundamentado pela condição, e pelo contexto histórico… Por conseguinte, a História da Ciência tem nos mostrado, de acordo com essa perspectiva, que não podemos descrever a natureza do exterior… como simples espectadores… pois tal comunicação está submetida a coações, que nos identificam como seres…no mundo físico.

Prigogine e a química filósofa Isabelle Stengers nos fornecem a pista para entendermos melhor a relação sujeito/objeto. Há dois níveis dessa relação evocados pelos autores…o epistemológico e o ontológico. No campo epistemológico, o conhecimento ocorre como uma construção fluente advinda de um diálogo com a natureza. As questões abordadas pelos cientistas são questões do seu tempo, e não eternas…se algumas delas se repetem eternamente é porque talvez não a compreendamos racionalmente em sua completude,    e, por isso, estão presentes em vários momentos diferentes. – A ciência é resultado não    só de uma…”interação” – mas também de uma “participação” com a natureza… em um determinado momento histórico. Não se trata de “revelação atemporal” dessa natureza.

As teorias físicas pressupõem a definição das possibilidades de comunicação com a natureza, na descoberta das questões por ela subtendidas – a menos que sejamos nós          a não podermos compreender suas respostas a esse respeito…A própria natureza dos argumentos teóricos – pelos quais explicitamos a nossa posição das descrições físicas, manifesta o duplo papel…de ator e espectador…função que passa a nos ser destinada.

Da relação sujeito/objeto                                                                                                          No campo ontológico, a visão prigoginiana nos indica que sujeito e objeto                          são indissociáveis… E o elemento essencial para essa conexão…é o tempo                      irreversível, condição indispensável para as… “histórias possíveis”. Dessa                        forma – ontologicamente – a irreversibilidade temporal possibilita…uma                          relação complexa inerente entre sujeito/observador…e objeto/observado.

Ultrapassar essa oposição, mostrando que daqui em diante…”conceitos físicos” contêm referência ao observador, não significa sua caracterização segundo uma visão biológica, psicológica ou filosófica do sujeito. Mas a coerência faz saber se a Física pode trabalhar com tal propriedade, tanto no mundo micro como no mundo macroscópico. De acordo com a “irreversibilidade” – a distinção entre passado e futuro é indispensável para que, epistemológica e ontologicamente a relação entre sujeito e objeto seja ‘indissociável’.  Tal distinção é mais bem notada na ‘consciência’, pois esta é constituída pela memória, pensamento, e sentimentos, essencialmente formados por temporalidade. Lembremos    que, pela “perspectiva prigoginiana”, em sistemas instáveis longe do equilíbrio … onde domina a irreversibilidade – a matéria ‘‘ – ou seja – ela reage…escolhe…participa.

Não estamos sugerindo que a ‘matéria‘ tem mesma percepção e comportamento que a consciência humana, nem Prigogine disse algo parecido. Apenas afirmamos, com base      em suas teorias, que matéria não corresponde à imagem mecanicista construída sobre      ela… E foi o “mecanicismo” quem idealizou a oposição entre “matéria” e “consciência”.

Da visão científica de Prigogine ressalta-se a “perspectiva” de uma relação muito mais profícua entre…Física e História… advinda entre outras coisas – da “temporalidade” e “historicidade” na natureza…Esse “diálogo interdisciplinar” – por meio de analogias e metáforas, busca compreender a realidade no modo complementar desses elementos, fundamentais ao conhecimento adquirido.

Conforme o filósofo francês Edgar Morin, complexus significa o que foi tecido em conjunto. É um tecido de “constituintes heterogêneos inseparavelmente associados,        uno e múltiplo… – onde acontecimentos, ações, interações, determinações e acasos constituem o nosso mundo fenomenal”.  Em sua abordagem, somente há, de fato, complexidade, quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo.        Por isso… em sua visão, a complexidade é a união indissociável entre a unidade e o múltiplo. Morin chamou a atenção para o ‘reducionismo’, presente por exemplo na fragmentação do conhecimento…Segundo tal abordagem, a complexidade podia, e          devia se resolver com base em princípios simples…e leis gerais. – “A complexidade    assim, era a aparência do real; e a simplicidade…a sua natureza”. Dessa forma…tal “paradigma da simplificação”, atrelado a leis gerais dariam conta da complexidade.

Eliminando a irreversibilidade temporal… e, tudo que é eventual e histórico, o paradigma da simplificação… se ligaria ao conjunto dos “princípios clássicos”… de inteligibilidade da ciência…simplificando a concepção (física, biológica, e social) do universo…Por sua vez, o paradigma de complexidade representaria os ‘princípios de inteligibilidade’… que ligados entre si forneceriam a complexidade do Universo. Dessa forma, segundo Edgar Morin: “a ‘simplificação’ é um paradigma – alicerçado ao princípio da confiabilidade total da lógica, para estabelecer a verdade intrínseca das teoriassendo toda contradição vista como um erro”. Assim, o ‘paradigma da complexidade’ alicerça-se no ‘princípio da inteligibilidade’, tanto local quanto singular, para o reconhecimento e integração da irreversibilidade do tempo na Física e Biologia. Suas descrições e explicações devem levar em conta a história    e acontecimento dos fatos, de modo que da relação com o sujeito, tal paradigma não se sustenta numa separação do objeto e seu meionem na limitação de suas teorias lógicas.

Na perspectiva de Morin – o saber é um fenômeno multidimensional, porém… “a organização do conhecimento, no interior de nossa cultura, racha esse ‘fenômeno multidimensional’. – E o mais grave, é que tal situação parece evidente e natural”.              Saberes” têm sido separados e esfacelados… – com cada um desses fragmentos ignorando a ‘visão global’ de onde faz parte…Como nosso modo de conhecimento          desune os objetos, precisamos conceber o que os une – sendo este um imperativo,            para a educação criar instrumentos de contextualização/globalização dos saberes.

Conclui-se então, que um dos grandes interesses de Prigogine foi a reconciliação                entre o ‘mundo físico’ e a ‘realidade humana’e, consequentemente, a defesa de                    uma abordagem que não trata o conhecimento das Ciências Naturais, como algo          separado das Ciências Humanas. Neste ponto, isso só pode ocorrer, ao levarmos                em conta que…tanto o ‘Caos’ (sistemas instáveis sensíveis às ‘condições iniciais’)        quanto sistemas termodinâmicos de não equilíbrio costumam mostrar            uma…metamorfose…na ciência. – Rodrigo França Carvalho (texto base) 2014 ***************************************************************************

Elucubrações sobre uma “Filosofia da História” (Vladimir Safatle)                         Talvez tenha chegado o momento de recuperarmos a história noutro patamarNão mais como grande processo de síntese/organização da experiência social do tempo, a partir de perspectivas universalizantes, mas como reflexão sobre o acontecimento e a contingência.

Um dos temas mais recorrentes da filosofia do século 20…foi a desconfiança em relação à história … a qual, para pensadores como Hegel e Marxno século XIX, tinha o significado de uma necessária…destinação da consciência, não apenas por ser esta…“o campo onde se efetua a ‘compreensão’…do sentido de todas ações individuais”, mas sobretudo, ao negar o particular, mostrando reconciliação com um… – “tempo social”, renovado no interior da ‘memória’ – que deveria ser “reflexivamente” assumido por todo sujeito em suas ações… – Daí em diante… a consciência não poderia mais ser…como era para Descartes — simplesmente    o significado de um “ato de reflexão”através do qual podemos apreender nossas próprias operações do pensamento, em um tempo instantâneo, sempre que nos voltarmos para dentro de nós mesmos.

A partir daí… a consciência será, fundamentalmente, um modo de apropriação do tempo.  O nome de tal apropriação será, justamente história”: explicando por que a verdadeira consciência só poderia ser uma “consciência histórica”… – A razão, portanto, pela qual, a partir do século 19, a memória elevou-se à condição de “função intencional definidora da consciência”... Desse modo, com a formação de uma “ciência da memória”, reflexões que buscavam pensar técnicas capazes de ampliar nossa capacidade de lembrança‘…surgem como processo de “espacialização mental“, onde arquivamos imagens. Mas, essa função de “estocagem” – ao longo do tempo, ficará em 2º plano (para a memória, sua redução à condição de mera lembrança de impressões das coisas que deixaram traços mentais, soa, para nós modernosum equívoco fundamental; ao ignorarmos sua dimensão temporal).

“Memória” (condição histórica da subjetividade)                                                                          Com a consolidação da história como discurso‘ — e a consequente determinação da consciência histórica como uma espécie de verdadeira natureza humana, a memória    deixa de ser compreendida como um processo de estocagem, para ser descrita como      algo próximo daquilo que poderíamos chamar de ‘atividade contínua de reinscrição’.

A este respeito, Paul Ricoeur lembra como a constituição do sujeito moderno, ao menos desde Descartes, foi solidária com certo tipo de esquecimento metódico baseado no esvaziamento do conhecimento fornecido pela imaginação, e na crítica da confiança nas imagens mentais depositadas em nossa memória…Ele admite que esse impulso teve sua importância na recondução da memória à questão do acesso a uma “não presença plena das coisas no espaço”, muito embora essa não seja exatamente uma questão encontrada em Descartes. No entanto, é esse problema que o leva a insistir na memória como modo    de acesso à realidade ontológica de um ser; que é fundamentalmente condição histórica.

históriaDesse momento em diante, a história passa a se constituirde fato, em um “discurso com aspirações científicas”, com um ‘tempo específico’onde ela não é mais vista simplesmente como: “uma coleção de exemplos…servindo    de guia ao presente”tal como disse Cícero… –magistra vitae…mas um complexo de acontecimentos, que se articulam progressivamente; unidos.

‘Lembranças não são imutáveis…mas reconstituições sobre um passado em contínua mudança, dando a sensação variada de passado, presente e futuro’.

Jacques Lacan havia compreendido claramente este ponto ao afirmar que: “A história é o passado enquanto historicizado no presente (pois já vivido no passado). O fato do sujeito intuitivamente rememorar os acontecimentos formadores de sua existêncianão é em si mesmo algo realmente importante… — O que conta é reconstruir… reescrever a história”. Podemos ver nesta afirmação…que demonstra como a história é dissolução contínua das ilusões do determinismo o ponto de chegada de uma profunda reconstrução do sujeito moderno, na força evolutiva do…”tempo histórico” como essência da…”subjetividade”.

O século 20, no entanto, terminou voltando as costas para essa crença na força emancipadora de tal consciência histórica. Pois é certo que ao mesmo tempo                    em que “ciências da memória” se constituíam… vimos o aparecimento de                  um diagnóstico de ‘sofrimento social’ ligado exatamente ao excesso de história.

Nietzsche e o “excesso de história”                                                                                        Estes ‘homens históricos’ acreditam que o sentido da existência se iluminará no decorrer de um processo.  Assim apenas por isto eles só olham para trás a fim deem meio à consideração do processo até aqui…compreender o presente e aprender a desejar o futuro; eles não sabem o quão a-historicamente pensam e agem nem como sua ocupação com a história não se acha a serviço do conhecimento puro mas a serviço da vida”. (NIetzsche)

NietzscheTudo se passa como se acabássemos por assumir um diagnóstico descrito por Friedrich Nietzscheque já          no final do século 19, descobre um sofrimento social próprio ao homem moderno, cuja consciência se faz    presa à obrigação de uma ‘ruminação infinita’ da história. – Nesta adequada metáfora… a consciência histórica do homem moderno lembra algo que lhe          faz voltar os olhos a sua própria ‘digestão’… dizendo preocupar-se apenas consigo mesma. – Rememorar      algo que nunca terminanos transporta à figura do processo que nunca chega ao fim – apenas nos exila daquilo que Nietzsche costuma chamar de “vida”.

Podemos dizer que o sofrimento que Nietzsche descreve é na verdade, o sentimento de uma cisão em relação à vida. – O que nos explica uma afirmação como: “Esses homens históricos querem que a história os ensine a compreender o presente e desejar o futuro.    No entanto, não percebem como “compreender” pode ser uma forma de esquecer. Eles também não percebem que o desejo em relação ao futuro (de se ‘eternizar’) – não pode    se fundamentar em uma ‘consciência histórica’mas sim, na reconciliação com a vida”.

Pode inicialmente parecer que Nietzsche retoma para si a divisão, típica do século 19, entre natureza e história – isto a fim de afirmar que uma das consequências de nossa constituição como consciência histórica é o exílio em relação a uma “natureza” que ressurge todas as vezes que Nietzsche fala de “vida”. Em seu texto, Nietzsche chega a lembrar como a felicidade animal está ligada à capacidade de viver, em larga medida,        de maneira a-histórica…exercendo a força soberana do esquecimento. O homem que lembra demais é doente; segundo ele: “É possível viver assim, como mostra o animal, quase sem lembrança, e viver feliz mas é absolutamente impossível viver, em geral,        sem esquecimento”. Longe porém de uma profissão de fé irracionalista, como alguns poderiam pensar…Nietzsche, com estas palavras, busca outro horizonte… Para ele, “consciência histórica” é aquela que submete a vida a uma “narrativa”. – E, o grande problema… é que isto significa ao mesmo tempo tomar posse dela … e perdê-la.

Tomar posse da vida por organizar a dispersão de acontecimentos numa rede contínua      de relações causais, normalmente chamada de “causalidade histórica”. A ideia de que a história contém relações causais necessárias entre fatos, que poderiam então ser objeto      de alguma forma de previsão, não aparece apenas como garantia para que ela seja vista como uma espécie de ciência. Ela é também a base do que entendemos por “progresso”.  Perder a vida por…aparentemente, não sermos mais capazes de pensar o que se dá sob        a forma da descontinuidade e contingência. – Desta, não sabemos ouvir a radicalidade,    em sua força de suspender e reorientar a uniformidade da continuidade histórica. Não sabemos ouvir acontecimentos que suspendam o modo até então usado para pensar aquilo que já ocorreu. — Aparece assim uma história … da qual nada surge … a não ser histórias, carentes de acontecimento, no sentido que Nietzsche quer dar a esta palavra.

Nietzsche traz a imagem de um processo sem finalidades, já que a vida – para eleé um contínuo jogo de forças sem direção, cujas configurações são marcadas por contingência    e acaso. Longe da noção de natureza como sistema fechado de leis causais, ele insiste na natureza como afirmação da imprevisibilidade do acontecimento. – E é nisso que…a seu ver, a submissão da vida à narrativa (operação feita pela história) perde… Com efeito, se para além de Nietzsche a filosofia contemporânea…(Lyotard e Foucault, por exemplo) desconfiam da história, talvez seja preciso recuperá-la, em outro patamar. – Não mais a história como grande processo de síntese e organização da ‘experiência social’ – a partir      de perspectivas universalizantes…mas como reflexão da contingência do acontecimento.

As “Meta-narrativas”                                                                                                                  Foi uma crença na narrativa histórica como espaço de anulação da diferença que levou o filósofo Jean-François Lyotard a criticar as chamadas…“meta-narrativas; que seriam o cerne das filosofias da história, que teriam animado embates sociopolíticos do século 20. 

jean-francois-lyotard-fraseAtualmente a filosofia da história é um dos setores mais…”desqualificados”…da especulação filosófica. Durante décadas aprendemos que…aquelas filosofias que orientam sua perspectiva crítica através do recurso sistemático a uma…’filosofia da história’ (tipoHegel, Marx) seriam tributárias de grandes ‘meta-narrativas’ teleológicas — absolutas — e…unívocas.

Desta forma, era preciso acreditar em uma história desprovida de acontecimentos, história cujo horizonte de reconciliação já estaria decidido e assegurado de antemão. – Assim, para tais filosofias — realmente não haveria futuro… – antecipado por uma reflexão do passado. Nesse sentido, despedir-se do século 20, para Lyotard, significaria reconhecer o fenômeno de “decomposição das grandes narrativas”, ou seja, dos discursos marcados pela crença na progressão cumulativa de experiências totalizantes por uma emancipação da humanidade.

Nesse processo aparentemente linear e progressivo de apropriação – pelo homem, de suas potencialidades, e de ultrapassagem de suas próprias limitações, a história seria o lugar de uma espécie de metalinguagem universal capaz de dar unidade…estabelecendo critérios gerais de validade para todos enunciados…que aspiram a uma legitimidade, no interior da vida social. Nessa crença na perfectibilidade humana, e no futuro como espaço no qual tal perfeição potencialmente se realiza, haveria em comum a ideia de que o momento atual, a partir do qual narramos a história, já permitiria a apreensão da totalidade dos fenômenos da experiência social. Assim, esta narrativa já seria a realização da consciência histórica.

Figura preponderante dessas “meta-narrativas” é a filosofia da história de Hegel base ao desenvolvimento que anima a filosofia de Marx. Todos conhecem a afirmação hegeliana de que…“o real é racional”. – Muitos compreenderam tal afirmação como a expressão de uma filosofia tão fascinada pela perspectiva do progresso do espírito do mundo, que seria capaz de justificar as piores catástrofes históricasOu seja, a filosofia hegeliana da história seria, no fundo, a secularização da crença teológica da providência divina. – Para esta filosofia, o futuro, mesmo que advindo da irracionalidade, seria algo impossível de se descartar. No entanto, podemos fornecer uma outra leitura possível do problema. Tal leitura alternativa nos leva a responder, de outra forma, a pergunta central: o que significa pensar a história?

Significaria simplesmente procurar construir redes causais de acontecimentos que se desdobram no tempo, um pouco como vemos no conceito de “causalidade histórica”?        Ou teríamos a compreensão de que – pensar a história implica em nos livrarmos das amarras de uma ilusão individual cujas ações são dotadas de sistemas particulares        de interesse?… Podemos tentar responder isso…interpretando de uma maneira diferente, tudo aquilo que se encontrava em jogo … na filosofia hegeliana da história.

georg_wilhelm hegelUm Estranho Progresso

Esta afirmação de Hegel em suas …Lições sobre a história da filosofia traz uma série de importantes pressupostos. – 1º) existe algo como uma “história universal”; implicando assim, aceitar a redução da multiplicidade de experiências históricas a uma só orientação. Trata-se por conseguinte da necessária definição da história como um coletivo singular.

Isto permitiu que se atribuísse à história aquela força interior de cada acontecimento que afeta a humanidadeaquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, frente ao qual o homem pode acreditar-se responsável – ou em cujo nome pode crer estar agindo – um ‘espírito do mundo’, como “alma de todos indivíduos”.

2º) tal orientação unitária da história move-se de maneira progressiva… em direção à tomada paulatina de consciência da liberdade. Uma tomada de consciência que não é individual, mas social. Nesse sentido…a história deve ser a narrativa do progresso em direção à consciência da liberdade. Mas devemos entender aqui o que significa, nesse contexto, dois termos fundamentais, a saber, “progresso” e “consciência de liberdade”.  “Os persas são o primeiro povo histórico…porque a Pérsia foi o primeiro império que desapareceu…deixando atrás de si ruínas”. Esta frase de Hegel diz muito a respeito daquilo que ele realmente entende por “progresso”. Isto é…consciência de um tempo      não mais submetido à simples repetição — todavia … submetido ao desaparecimento.

Progresso diz respeito a certo modo de pensar a origem, pois sob ele, desde                          o início a origem aparece marcada pela impossibilidade de permanecer.

“Origem” é, na verdade, o nome que damos à consciência da impossibilidade de permanecer em uma ‘inércia silenciosa’. Por isso que a verdadeira origemesta                que aparece na Pérsia, é caracterizada por um espaço pleno de ruínas…O ato de desaparecer é assim compreendido como uma consequência inicial da história.        Assim, se os persas são o 1º povo histórico é porque eles se deixam animar pela              inquietude de um “universal”, que arruína todas as determinações particulares;           modos de manifestação do… “Espírito” – em sua plena potência de irrealização.      Todavia, esse desaparecimento não é a afirmação sem falhas da necessidade de      superação em direção à perfectibilidade. De fato, há uma pulsação contínua de desaparecimento no interior da história – que éde certa forma, o seu próprio              telos. Disse Hegel: “Apenas as coisas que têm a força de desaparecer permitem                que se manifeste um Espírito que somente constrói destruindo continuamente”.

Quanto a isso, talvez valha a pena dar a palavra a um amigo de Foucault, Gérard Lebrun:
“Se somos assegurados de que o progresso não é repetitivo, mas explicitador, é porque o Espírito não se produz com formações finitas, mas, ao contrário, recusando-as uma após outra…Não é a potência dos impérios, mas sua morte que dá razão à história”…Do ponto de vista da história do mundo, os Estados são apenas…”momentos evanescentes”. Esta é uma maneira precisa de dizer que a “história do Espírito” é a narrativa do movimento de autoevanescimento de determinações finitas; o progresso é um evanescimento formador.

A “consciência da liberdade”                                                                                                Para entender melhor a necessidade deste topos, seria importante levar em conta o que Hegel entende por “consciência da liberdade” enquanto motor do progresso da história.

Liberdade-de-consciênciaO conceito hegeliano de liberdadenão se reduz à noção liberal de liberdade positiva dos indivíduos que afirmam seus sistemas particulares de interesses. Na verdade, há para Hegel, uma liberdade em relação aos limites que a noção de ‘indivíduo’ impõe à experiência. Ele sabe que nada se realiza sem que os participantes da ação também se satisfaçam. — No entanto… também é sensível ao fato de que se sofremos por não ser reconhecidos socialmentecomo indivíduos com ‘interesses particulares’ e direitos positivos frente à pessoa jurídica, podemos também sofrer por sermos apenas um indivíduo, submetidos a um profundo regime de atomização social. – Isso não é estranho para um autor que compreendeu a liberdade negativa, como momento inicial e fundador da consciência da liberdade. Tal limitação própria à noção de indivíduo explica por que… homens históricos — serão aqueles cujos fins particulares não são apenas particulares…mas que submeteram tais    fins à transfiguração, permitindo que contenham uma ‘vontade do espírito do mundo’.

Pode parecer que tais colocações sobre os indivíduos da história mundial nos levariam necessariamente em direção a alguma forma de justificação do curso do mundo, como temia Adorno em sua “Dialética negativa”, pois sendo a vontade do espírito do mundo aquilo que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar      da impressão de que, retroativamentea filosofia hegeliana constrói a universalidade,        a partir daquelas ‘particularidades’, que conseguiram vencer as “batalhas da história”?

Uma maneira de quebrar tal impressão, é explorando melhor as colocações de Hegel,        como quando diz: “Na história mundial, através das ações dos homens, em geral eles realizam seus interesses mas com isto é produzido algo que permanece no interior,      não presente em sua consciência e em sua intenção”. Ou seja, o progresso é feito por       ações nas quais os homens não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um motor da história que, para a consciência individual, aparecerá necessariamente como algo da ordem do involuntário. É da confiança neste involuntário que se constitui o homem histórico‘. Algo no mínimo estranho, se quisermos continuar aceitando uma espécie          de “reconciliação” entre ‘consciência’ e ‘tempo rememorado’…no interior da história.

Que tipo de reconciliação é esta na qual a consciência deve se reconhecer na “dimensão do involuntário”, onde ela necessariamente não sabe o que faz?…É levando isso em conta que podemos afirmar não serem os indivíduos presos na finitude de seus sistemas particulares de interesses àqueles que fazem a história. Por isso, não são eles que podem narrá-la. Para Hegel, quem narra a história não são os homens…mas aquilo que ele chama de Espírito.  E, se a língua do Espírito é a única capaz de realmente narrar a história é porque devemos compreender a história como esse espaço onde indivíduos se dissolvem ao transfigurarem seus interesses particulares … e assim se realizam – em um movimento de valor universal.  É a possibilidade de tal transfiguração dos indivíduos que devemos chamar de progresso. E progresso não é uma simples crença na perfectibilidade humana e na suspensão de seus conflitos…É um modo de experiência do tempo no qual nunca se está totalmente limitado às determinações do presente…Por isso, por mais paradoxal que possa parecer, não existe crítica analítica da ‘finitude’…sem o auxílio de uma concepção globalizante de “progresso”.

Assim, se voltarmos à frase inicial de Hegel: ”A história é o progresso na direção da consciência da liberdade”, poderemos agora dar uma interpretação mais adequada:          “A história é o discurso que expõe o movimento de afirmação, do que não se esgota            nos limites da capacidade representativa da consciência individual”. Para Hegel,              este é o sentido da história. Talvez por isso…boa parte dos eventos históricos tenha          sido animada pela procura em superar os limites da figura humana. — E…também,      talvez por isso seja tão difícil abstrair a ‘história’ do desejo de nos livrarmos de          nós mesmos…  e realizarmos algo a respeito do qual ainda não temos consciência.

MUITAS VOZES
A história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de…“agoras”. – Quando explode-se o continuum da história, explode-se também a finitude que constitui os indivíduos. — Tal acontecimento é uma lição não muito distante do que Hegel descreveao falar da superação da consciência pelo Espírito. 

walter benjaminPara entender melhor o que está em jogo, na liberdade produzida da transfiguração dos indivíduos  —  no interior da história, Walter Benjamin menciona… “um tempo saturado de agoras”, parecido à metáfora usada por Freudpara falar da estrutura do sujeito moderno: ‘uma cidade na qual todos seus “estágios de desenvolvimento” estão em um mesmo… — espaço caótico’.

Este tempo saturado de Benjamin é um tempo onde cada gesto remete a uma série de gestos passadosque nunca passaram completamente, mas que continuam a habitar          os gestos presentes – dando-lhes uma densidade propriamente histórica. A história é      um tempo em que tudo é repetição. Algo não muito diferente do que o próprio Hegel      tem em mente, ao afirmar que“A vida do espírito presente é um círculo de degraus,      que por um lado, permanecem simultâneos, e apenas por outro lado aparecem como passados. Momentos atrás de siele também os tem em sua profundidade presente”.

Note-se como o fenômeno que Benjamin e Hegel descrevem (embora toda diferença entre os 2 autores) parece aproximar-se do excesso de história…próprio à descrição fornecida por Nietzsche. Porém, há uma diferença maior aqui… Nietzsche tinha em vista, sobretudo, o esvaziamento da dimensão acontecimento…por uma narrativa capaz de impor à história uma continuidade, onde o presente vê sempre o passado como um…ainda não…sempre submetendo o passado a uma relação causal – que se faz de modo progressivo e previsível.

Ao contrário, quando Benjamin fala da sucessão de “agoras” como uma repetição…lembra como tal concepção explode a noção da história como uma continuidade. Se não podemos falar dessa repetição como uma continuidade – é porque sua apreensão…pela consciência, produz uma profunda descontinuidade no tempo Como palco de uma multiplicidade de repetições, a consciência suspende seu modo temporal de ser … abandonando a crença na linearidade cumulativa própria a representações que compreendem a passagem do tempo como passagem de um indivíduo a outro. Ela pode então se compreender como portadora de um tempo onde o presente é apenas a contração de múltiplas séries passadasno qual a desaparição não é o destino de todas as coisaspois estamos no interior de uma cadeia de repetições, onde as múltiplas vozes dos que nos antecederam – nunca cessam de falar.

Por fim, é possível dizer que, se a contemporaneidade é marcada pela desconfiança              em relação à historicidadetalvez não seja apenas porque tememos as totalizações generalizadoras – que nos ocultam a real dimensão de ruptura dos acontecimentos.    Talvez seja o caso de se perguntar se, por trás do medo da história, não está o medo            dos reais acontecimentos, em toda sua força plena de descentralização. (texto base)                 

texto p/consulta: “The reappearance of Galileo’s original Letter to Benedetto Castelli

Sobre Cesar Pinheiro

Em 1968, estudando no colégio estadual Amaro Cavalcanti, RJ, participei de uma passeata "circular" no Largo do Machado - sendo por isso amigavelmente convidado a me retirar ao final do ano, reprovado em todas as matérias - a identificação não foi difícil, por ser o único manifestante com uma bota de gesso (pouco dias antes, havia quebrado o pé uma quadra de futebol do Aterro). Daí, concluí o ginásio e científico no colégio Zaccaria (Catete), época em que me interessei pelas coisas do céu, nas muitas viagens de férias ao interior de Friburgo/RJ (onde só se chegava de jeep). Muito influenciado por meu tio (astrônomo/filósofo amador) entrei em 1973 na Astronomia da UFRJ, onde fiquei até 1979, completando todo currículo, sem contudo obter sucesso no projeto de graduação. Com a corda no pescoço, sem emprego ou estágio, me vi pressionado a uma mudança radical, e o primeiro concurso que me apareceu (Receita Federal) é o caminho protocolar que venho seguindo desde então.
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Uma resposta para A permanência do ‘método histórico’ em Spinoza

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