“Notas de rodapé” (uma revolução literária em curso)

Os lugares que frequentamos e as pessoas que estão à nossa volta vão ficando invisíveis com o passar do tempo…Aos poucos, nossa atenção encontra novos alvos, e a paisagem some — como somem os rostos e a realidade particular de cada um até que não reste quase nada. – E, no entanto, estão todos vivos a nosso lado…e o sol se põe de um modo que um dia nos pareceu tão bonito – e aquela mulher canta de um jeitoque antes nos fascinava tanto. Esse mundo querido ficou invisível para nós porque nos acostumamos com ele…e acostumar-se quer dizer não mais notar, não ouvir, e talvez amar um pouco menos. Mas, toda beleza perdida aparece outra vez, quando abrimos os olhos, e vemos tudo de novo – assim como da primeira vez. (Luiz Carlos Lisboa – O som do silêncio)

dostoievskiA novela “Memórias do subsolo” foi toda escrita por Fiódor Dostoiévski (1821-1881) entre janeiro e maio      de 1864, em Moscou – enquanto caía sobre a cidade    um pesado inverno, e no aposento ao lado, morria a mulher do escritor – por tuberculose. No monólogo, um aposentado parece estar voltado apenas para si mesmo…mas na verdade dialoga com o mundo…ou,        o mistério da ‘existência humana’. — Na 1ª parte do livro, ele duvida de todas certezas – enquanto tenta disfarçar a sua ansiedade ante tantas alternativas.

Na parte que se segue… o livro mostra os encontros e desencontros do personagem, assim como o que está por trás dos seus interesses e até da sua própria crueldade. O modo como o herói desmonta os raciocínios que acabou de construir – para, em seguida, os refazer…e novamente duvidar deles … é um desafio para o leitor curioso… – Jorge Luís Borges disse, certa vez … que a simples leitura atenta de “Memórias do subsolo” mudou sua maneira de ver o mundo. “Quando li Memórias” ele confessou “senti que havia perdido minha inocência a respeito da vida”. Um outro grande autor — William Faulkner, escreveu que o russo “é tal qual o vagalume — que ilumina muito pouco quando pisca … mas com a sua pequena luz…podemos então perceber – de quanta escuridão está cercado o ser humano”. 
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“Memórias do subsolo”, traduzido também em português como “Notas do subterrâneo”,    é o menor de todos os livros de Dostoiévski…mas suas páginas carregadas de meditação profunda sobre o homem, fizeram dele um dos maiores livros da literatura mundial dos últimos dois séculos. — Não é exagero dizer que uma viagem pela obra desse espantoso escritor, equivale a uma jornada moral, psicológica e filosófica. Tal relato pode ser visto como a meditação de um observador ávido pela realidade e significado da vida humana.    A visão religiosa do livro assenta na mística ortodoxa grega e russa, tendo a “conversão” como o fenômeno que ocorre no eterno presente, e não ao longo da vida ou ao seu fim.

A obra pode ser percebida como um tratado das dúvidas, mentiras e esperanças que inquietam os que se atrevem a pensar um pouco além das banalidades do cotidiano,            ou das crenças que o medo fabricasendo tecida de falsas aproximações com o real,          as quais escapam à nossa compreensão num parágrafo … para logo nos iluminarem,          no seguinte. Mas Dostoiévski é interessado demais no mistério humano — para nos    deixar a meio caminho da realidade: A 2ª parte do livro revela o filósofo que refaz a pergunta, e que de novo acende a chama da curiosidade em nós. Ele ri da pretensão humana de saber tudo, e logo nos enche de novo a almacom esperança. Seu herói            é belo e assustador. – Por isso… nunca sabemos ao certo se nos conforta, ou desafia.

Poucos críticos, talvez, olharam tão fundo no coração de um autor quanto Mikhail Bakhtin, que na publicação do seu livro Problemas da poética de Dostoiévski, já      estava preso na URSS, por suas opiniões. – No estudo, o teórico da linguagem diz          que “Memórias do subsolo se fez sobre uma confissão elaborada na expectativa da      palavra do outro”. Para ele somos quase nada, mas sem dúvida somos tudo aquilo          que ele chama de ‘polifonia’, e que Dostoiévski mostra tão bem em seus romances,              e sobretudo, neste “concerto das vozes polifônicas independentes da voz do autor”.

DostoiévskiMas do que trata, afinal, o livro?…Esta novela em 2 partes é construída sobre uma confissão que rasteja como serpente… entre conceitos e opiniões…argumentos e análises. À medida que seus próprios elementos são examinados; se destroem mutuamente…Sua leitura é tudo, menos monótona. Mantendo a atenção… o leitor é recompensadopor suas descobertas. A 1ª parte, consiste em 11 pequenos capítulos. O herói é um ser magoado pela vidaalguém que se esconde em seu “buraco de rato”, mas que ainda tem sonhos de grandeza. – Ele nos contagia da sua indignação…para em seguida desmontar os argumentos que usou para isso,    e… se acaso nos faz rir — convoca a seriedade em nós…como algo indispensável. Brincando com nossas reações e sentimentos, esvazia as esperanças…e constrói castelos com palavras, em torno da “imprecisão dolorosa das coisas”.

Seu alvo mais constante é o racionalismo, e sua única certeza é a dúvida.                            O “homem do subsolo” conhece a arte cruel e sofisticada de tirar o tapete                              de sob nossos pése faz isso de um modo tão especial – que nos agrada.

O narrador sem nome é um funcionário público aposentado que deseja a atenção do leitor, para lentamente deixá-lo em dúvida. Quando abala os pilares a que nos agarramos com as nossas certezas, parece impiedoso. Mas logo a seguir, descobrimos que nos salvou de uma ilusão. O fato é que o autor/personagem – por sua arte admirável … mantém nossos olhos fixos nele. Tudo na sua narrativa é convincente…e ao mesmo tempo, pura metáfora, como na menção ao…”Palácio de Cristal” a sociedade socialista perfeita que sempre morou no sonho dos russos, e afinalnunca passou de um desejo. – A 2ª parte do livro é duas vezes mais longa do que a primeira, e há nela três episódios que revelam o desconforto do herói entre os seus semelhantes. Com o subtítulo A propósito da neve molhada, sua narrativa inclui um longo diálogo com Lisa – jovem prostituta, contra quem o sombrio personagem revela seu lado mais cruel A certa altura, ele se volta à evocação dos seus 40 anos (da 1ª parte do livro) – para provar que no mundo…todos vivem suas vidas baseados em ficções.

Na Rússia do tempo do autor, segunda metade do século XIX, o livro foi recebido com frieza pelo leitor comumembora para alguns soasse como escrito pelo maior filósofo      da épocaNietzsche. No entanto, quem explicou melhor sua fraca aceitação inicial foi        o tradutor brasileiro de Dostoiévski…Bóris Schnaiderman, que lembrou num dos seus notáveis prefácios que: Os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de    uma obra”. — Não obstante, o extraordinário nisso tudo… é o fato dos personagens de Dostoiévski estarem, confortavelmente“, identificados com a nossa época  por onde floresceram as ideologias marxistas, o avanço imperialista, e o liberalismo econômico.

Na obra fica bem nítida a tensão entre o homem profundo … aquele que tenta entender        a realidade a partir do percebimento das próprias contradições, e a grande maioria dos demais, que agarrados a “certezas condicionadas”, desesperam em meio à verbalização,      e busca de argumentos. Guiado por sua natureza, o homem profundo é contestado pela realidade, traído por suas contradições e desejos, a cada momento. Quanto mais fundo      de si ele vai, mais agoniado se sente. Em “Memórias do subsolo”…isso se mostra a cada página, e por toda narrativa paira a mensagem vaga de que todo pensar humano é feito apenas de sonhos e impressões. Para o anti-herói subterrâneo‘, o homem só faz coisas más porque não compreende sua própria alma. A oposição entre o “homem subsolo”      e o “homem de ação” deve ser entendida para que o livro faça sentido ou será só um rosário de queixas, amargor e revolta de “agoniados, levados ao paroxismo pela razão”.

Dostoiévski-fraseMas Dostoiévski foi, no seu íntimo, apaixonado e impetuoso, lendo em voz alta cartas e manifestos radicais – que o identificavam com materialistas, niilistas… e todos os “demolidores do momento”;    paixão que custou ao escritor… dura experiência.    Em 23 de abril de 1849… ele foi preso e ao fim daquele ano condenado à morte: pena suspensa,    eem seu ‘momento derradeiro’ — convertida à sentença de confinamento por 4 anos na Sibéria.

No degredo siberiano, ele sempre conservou consigo o velho exemplar de um evangelho cristão – que decorava…e em cujas páginas fazia anotações. – Por sorte da humanidade, porém, nunca foi homem de um livro só. O contato com Platão, com os clássicos gregos, com Santo Agostinho e Shakespeare, entre outros, ajudou Dostoiévski a acreditar que a condição humana não tem sentido ou pelo menos não faz sentidopara nossos olhos humanos. Ao mito grego de um ‘esforço inútil’ juntava-se a promessa cristã de que pelo sofrimento o indivíduo se transfigura…sendo o niilismo apenas a negação da esperança.

A voz sem nome de Memórias do subsolo, que argumenta e protesta,                      fazendo pensar a quem a escuta, que polemiza, para em seguida rever                                suas ideias, é a daquele que desafia a própria razão, que desconfia da                          rigidez das próprias certezas… e procura sem cessar até morrer.

Ao fim do exílio siberiano o escritor conseguiu os livros que buscava (Corão, Vico, Kant e Hegel)…e descobriu assim, que o interesse religioso era uma sede quase nunca saciada, e que às vezes a busca é o próprio objetivo do caminho – mesmo que despercebido por nós. Em Dostoiévski, sua formação filosófica fez dele o autor de sua vasta obra, incluindo essa pequena joia que é “Memórias do subsolo”. O segredo da imensa força narrativa do autor    é explicado pelo filósofo, pensador e linguista Mikhail Bakhtin que em sua “Estética da criação verbal” defendeu a ideia de Heidegger, segundo a qual ‘é a própria existência que fala pela boca do escritor’. Com rara sensibilidade, Bakhtin demonstra que, em várias de suas obras, Dostoiévski não se inspira em ideias petrificadas; mas sim, discute com seus personagens, reforçando argumentos dos que se opõem a seus heróis, criando assim um verdadeiro romance de ideias, sem particularizar ou se identificar mantendo o mesmo vigor crítico. Por isso é difícil dizer qual das 2 partes do livro é a mais apaixonante…para quem segue seus volteios, sua indignação, e sua esgrima verbalaparentemente infinita.

“O monólogo da perplexidade humana em face do mistério da vida”. Uma abordagem do livro de Fiódor Dostoiévskipara o “Clube de Leitura” da “Academia Paulista de Letras”.  Luiz Carlos Lisboa…jornalista e escritor…é autor de “O jejum do coração” (Peônia Press), entre outras obras; ocupando a cadeira nº 6 da Academia Paulista de Letras. (texto base***********************************************************************************

Crônicas de Sebastopol (Liev Tolstói)                                                                                          Ainda longe de ser considerado um dos escritores maiores da literatura universal, Tosltói relatou, em 1855, nas suas “Crónicas de Sebastopol”, os horrores da “Guerra da Crimeia”, na qual participou como jovem oficial a serviço do exército russo – confrontando leitores com sentimentos e angústias seus e de outros soldados, num doloroso retrato do conflito.sebastopol

Entre 17 de outubro de 1854 e 11 de setembro de 1855, a cidade de Sebastopol, península da Crimeia, foi palco de um dos episódios mais sangrentos da ‘Guerra da Crimeia’ (1853-56), entre a Rússia czarista e a aliança liderada pela França de Napoleão III. Duas forças imperialistas enfrentavam-seas antigas nações da Europa ocidental, e a Rússia, que se ocidentalizava. Liev Tolstói participou das batalhas… e a experiência serviu de base para três contos longos, publicados em 1855 como “Crônicas de Sebastopol“. A experiência também serviu para uma transformação em Tolstói. Diante dos horrores da guerra…o escritor, cuja literatura discute, bem como é veículo do esforço russo de modernização e ocidentalização, começa a questionar o sentido da defesa daquela…”grande pátria”…e, a validade da guerra. Escreve ele logo no início do segundo conto…“Sebastopol em maio”:

Muitas vezes me veio um pensamento estranho: e se um dos lados em guerra propusesse ao outro enviar apenas um soldado de ambos os Exércitos? […] se, de fato, as complexas questões políticas envolvendo ‘representantes racionais’, de ‘criaturas racionais’, devem ser resolvidas por meio de uma luta… que lutem esses dois: um para tomar a cidade, e o outro para defendê-la. Esse raciocínio parece paradoxal, mas é justo. Das duas, uma: ou a guerra é uma loucura, ou se pessoas praticam tal loucuraabsolutamente não são criaturas racionais – como nos habituamos a pensar… sabe-se lá por quê. (Liev Tolstói)

Num recente artigo publicado pela BBC, John Self destaca: “Do lado russo, a Guerra da Crimeia produziu provavelmente o 1º correspondente de guerra do mundo, quando um jovem oficial do exército russo interessado em literatura registou crônicas sobre o cerco      ao porto de Sebastopol em 1854/55 e, pela 1ª vez, assinou com o nome completo os seus escritosLev Nikolaevitch Tolstói. — Suas 3 “Crônicas de Sebastopol” mostram as qualidades de Tolstói em uma forma inicial – uma mistura de política e personalidades, reconstrução histórica rigorosa … e um olho aguçado para uma caracterização sublime”.

A participação na defesa da cidade de Sebastopol, cuja queda ditou o fim da “Guerra da Crimeia”, deu a Tolstói a tormentosa experiência necessária para relatar no calor dos acontecimentos suas crônicas dividas em 3 períodos: “Sebastopol em Dezembro de 1854”, “Sebastopol em Maio de 1855”, e “Sebastopol em Agosto de 1855”. Na 1ª crônica,      o autor nos transporta à vida na cidade – onde, progressivamenteo cenário de guerra      vai sendo revelado. Na 2ª crônica Tolstói analisa vários aspectos psicológicos da luta, e    da transformação espiritual (da fé ao desespero), que seus integrantes vão enfrentando. Por fim, na 3ª crônica, descreve-nos o culminar do conflito com a derrota…e retirada    das forças russas. — Juntando, em estilo próprio e inconfundível, artifícios da ficção…à reportagem de guerra, ‘Crónicas de Sebastopol revela a visão única de um escritor que    se tornaria uma das maiores referências da literatura universal – ao mesmo tempo que    nos transporta para um histórico cenário de guerra. – Praticamente 170 anos depois, e    em plena “Guerra da Ucrânia”, a obra, publicada originalmente n jornal literário russo Sovremiénnik (‘O Contemporâneo’) mantém uma atualidade perturbadora. (texto base) ********************************************************************************

“A vida continua…e a realidade é inesgotável!”                                                                   “Tchekhov é o analítico mais sutil das relações humanas. Quando lemos                                  suas… ‘Histórias sobre quase-nada‘… — nosso horizonte se estende,                                  e assim ganhamos um espantoso sentido de liberdade” (Virginia Woolf)

tchekhov

Tchékhov é provavelmente a figura menos ortodoxa da literatura russa. Grande explorador do coração humano, ele sentiu a tragédia humana da mesma forma que os pássaros e as cobras percebem um terremoto que estaria chegando (Valéria Paikova)

Entre o estrelato áureo dos escritores russos do século 19 — Anton Tchekhov (1860-1904) ficou consagrado como sendo o mais ousado transgressor da tradição literária clássica…e, um importante precursor da linguagem e da forma artística contemporâneaEscritor de múltiplas facesTchekhov, antes de tudo, é um reconhecido mestre de narrativas curtas. A cada um de seus contos, conseguiu recriar a imensidão do ser humano, em um infinito microcosmo literário, abrangendo o mundo.  Em sua primeira fase, o tema dominante da obra literária – poderia ser definido como a ridicularização do que se considera ‘normal’, isto é…aquele bom senso vulgar e mercantil que rege a vida comum. Nestamergulha o escritor, para captarnos ‘fatos miúdos’o essencial e eterno da… “existência humana”. Para ele “A principal culpa está dentro da nossa própria natureza humanae não nas condições sociais, quiçá injustas do mundo”.

A técnica da narrativa e visão artística de Tchekhov (o escritor menos engajado da época), eram muito inovadoras no contexto da literatura russa, que sempre tinha certa inclinação para as pregações morais. No teatro de Tchekhov, a ação é movida pelas pausas, silêncios, mudanças do estado de espírito, ou melhor, pela “corrente submarina”… tudo aquilo que cria no espectador a sensação de assistir no palco ao fluxo da vida. Assim, nas peças de Tchekhov, sempre existe algo mais importante de que o plano dos acontecimentos; isto é, algo que estabelece a ligação entre o cotidiano da vida humana e a eternidade. Tal ligação se estabelece através do principal motivo do teatro tchekhoviano: o tempo… Então, para abrir a ação dramática à eternidade da vida – o dramaturgo irrompe seu… ‘tempo teatral’.

Anton Tchekhov quebra todas as regras que existiam antes no ofício dramático. É difícil achar em suas peças componentes obrigatórios do enredo de drama — ponto de partida, conflito, culminânciadesfecho. Ao abolir a história propriamente dita (“o enredo pode até não existir”afirmava o escritor), o credo de Tchekhov encontra-se na “importância das coisas não importantes” — por trás das banalidades e trivialidades do cotidianohá um mundo de conflitos trágicos. – Em comparação às peças dos antecessores (com uma trama dramática espetacular), parece nada acontecer no teatro de Tchekhov – pois suas peças sempre têm um final aberto Se o teatro clássico falou de dramas que acontecem     na vida, Tchekhov foi o primeiro a mostrar no palco o drama da própria vida… “regular, plana, comum, sem devaneios — tal como ela tem por costume se mostrar na realidade”.

O escritor não se acha pregador da verdade, nunca sugere soluções aos problemas tão difíceis da vida, por isso, muitas obras não têm desfechoterminando em reticências,      como o fluxo natural da vida. Tchekhov é um daqueles escritores que acredita ser a  liberdade da interpretação de texto um privilegio sagrado de cada leitor…participante    ativo no ato da criação literária. Através do indefinido e do infinito, sempre presentes      na narrativa de Tchekhov…suas obras ficam ligadas com a eternidade da própria vida,      que sempre se sente nas obras de arte que ultrapassam seu tempo. – O efeito buscado,      ao encerrar a narrativa, é que a vida continua, e a realidade é inesgotável. (texto base********************************************************************************

“O Inspetor Geral” de Nikolai Gógol (Ucrânia/1809 – Rússia/1852)                                      Gógol inaugurou uma nova etapa da literatura russa, que iria inspirar                                    grandes autores – como Dostoievski, Tolstói, Tchechov e outros mais.

TCHEKHOV.Apesar da peça ter arrebatado o público com uma crítica social e política muito intensa, desde a sua estreia no século 19…até os dias de hoje, tal efeito não era o objetivo de Gógol, muito pelo contrário, sua pretensão era um tanto modesta O escritor, meio conservador e simpatizante do Czar, queria mostrar numa comédia leve, o cotidiano ridículo de uma pequena cidade no interiorda Rússia:

Um pequeno vilarejo russo recebe a informação de que em breve chegará aos seus portões um ‘inspetor geral’, para fiscalizar todo serviço público do lugar. O governador do vilarejo, que recebe a carta, junta-se aos outros funcionários importantes…para que possam traçar uma estratégia para encobrir suas cotidianas corrupções…Mas, ao mesmo tempo, chega à cidade um baixo funcionário da capital, metido a importante, que se instala num hotel do vilarejo. É Khlestakov, que…de viagem para sua cidade natal, perdera todo o seu dinheiro no jogo, e por isso parou ali, sem recursos para seguir viagem. E assim, o desespero toma conta das lideranças locais – que confundem o forasteiro recém-chegado, com o inspetor.

Então, ao perceber a troca de personagem com o temido inspetor, Khlestakov resolve se aproveitar da situação. – Facilmente retira dinheiro de todos eles…instala-se no melhor quarto da casa do governador – come do melhor banquete, e ainda flerta com a filha e a mulher do homem mais importante do vilarejo. Por fim…segue sua viagem com o bolso cheio do dinheiro das propinas que recebera. — Os líderes… já tranquilos com a partida pacífica do falso inspetor, comemoram o desfecho favorável que teve a estória…Todavia,    é aí quando se dá a reviravolta. Ainda no auge da euforia, recebem 2 notícias, que soam como catástrofe…Khlestakov não era inspetor geral, e pior ainda, o verdadeiro inspetor acabara de chegar… – e estava convocando uma reunião… – com todos os líderes locais.

A habilidade em descrever a realidade…os tipos…e costumes russos daquele tempo, permitiu que Gógol revelasse o que havia de mais humano no seu povo e, portanto,        não foram poucas as mazelas expostas. – Há um bom tempo…o “Inspetor Geral” é considerado um clássico da…sátira teatral — e, além disso — uma obra prima da dramaturgia. — Sua capacidade de denúncia… juntamente com o humor refinado,      fazem com que a peça continue sendo um sucesso, mostrando como se configuram            as tramas de corrupção, já naquele século 19, chegando até a contemporaneidade.

Os cidadãos do pequeno vilarejo russo, ou mesmo das pequenas e grandes cidades do nosso Brasil, veem-se inseridos no ambiente da peça – pois é também assim que suas autoridades se comportam – manipulando cargos que ocupam para benefício próprio.        E, às vezes, quando esses cidadãos veem a chegada de um…”Inspetor Geral”, que “vai varrer toda sujeira“…ou “caçar os marajás” – terminam por ser enganados… pois, o salvador da pátria normalmente é só mais um deles. E, por isso, o teatro é tão temido    pelos poderosospor ser o espelho da sociedade. Alex Ribeiro mar/2019 (texto base*****************************(texto complementar)*****************************

‘Stalker’, o imponderável herói de Tarkovski
Difícil medir o quanto esse grande filme é religioso. Seu diretor tem controle absoluto      da narrativa, do aparente tempo morto…divagações que tanto contribuem ao mistério        do todo. O resultado é uma “real” ficção científica, em que três homens entregam-se à maior das necessidades…a de penetrar o inimaginável…ainda que não possam fazê-lo.

stalkerfimAssistir hoje, às…cenas imóveis…típicas de Tarkovski; quando a cultura de massas criou uma nova…”percepção da realidade”  identificada em uma frenética alternância das informações, é um verdadeiro desafio. Sendo assim…por que assistir seus filmes hoje?…A resposta está em ‘Stalker’ (1979), sua obra genial, ultrapassando limites de tempo e paíssempre aberta a releituras.

Hoje é difícil imaginar como foi possível o surgimento de um fenômeno como Tarkovski, num ambiente de tamanha censura como a União Soviética. Mas o fato é que os anos em que o cineasta frequentou o “Instituto Cinematográfico de Moscou” – coincidiram com a assim chamada…era do degelo, então conduzida por Nikita Krutchióv, e marcada pela renovação de todas as artes, fossilizadas à época stalinista. O degelo entreabriu a cortina de ferro, trazendo consigo a influência da cultura ocidental e oriental em vários sentidos, inclusive no cinema, quecom uma ideia “autoral”, contradizia o “coletivismo soviético”.

Destoando da maioria dos filmes de Tarkovski – “Stalker” foi exibido em todo território      da União Soviética, praticamente sem cortes da censura. Ao mesmo tempo, foi o último filme produzido pelo diretor em solo soviético. Antes do início das filmagens, Tarkovski vivia sérios problemas financeiros, e sua salvação seria esse novo projeto. – Entretanto, rotulado pelas autoridades soviéticas como um diretor de mensagens obscuras‘…havia muita dificuldade dele conseguir recursos para financiar seus projetos. A solução então encontrada foi se unir aos irmãos Arkadi e Borís Strugátski; trabalhando com textos de cunho fantástico. Após diversas propostas, o livro Piquenique na beira da estrada foi aprovado como roteiro para o novo filme. O texto original foi radicalmente alterado, os autores, então roteiristas, tiveram que reescrevê-lo várias vezes … até agradar o diretor.

stalker.os3Foi especialmente difícil se chegar a um acordo quanto ao personagem principal, ‘Stalker‘. – A palavra é um neologismo criado pelos próprios irmãos Strugátski,    que hoje faz parte da ‘linguagem oficial’, definindo guias que levam excursões às construções abandonadas… — tal como acontece à cidade de Pripiat — próxima        ao local da…”catastrófica”…Tchernóbyl.

Se, no romance original, Stalker conduzia expedições à “Zona” para ganhar dinheiro no filme ele adquiriu traços de um louco – um mendigo vidente…personagem muito querido na cultura russa… — único a ter permissão de falar verdades desagradáveis diante do tsár, mesmo sendo este: Ivan, o Terrível. Desse modo, o próprio Tarkovski (assim como tantos outros) torna-se uma espécie de Stalker — se opondo (veladamente)…ao regime soviético.

O enredo se mostra inicialmente bastante simples – vinte anos antes dos acontecimentos narrados durante o filme em um país não nomeado… a suposta queda de um meteorito (versão “Tunguska“) cria uma área de estranhas propriedades – simplesmente conhecida por “Zona”, onde as leis da física e geografia não se aplicamEm seu “centro de atração”, segundo reza a lenda local, existe um Quarto onde…supostamente, desejos mais secretos se realizam. Com medo de uma invasão em busca do tal quarto secreto“, as autoridades cercam o localproibindo a entrada de todos. Entretanto, tal risco de invadir um espaço restrito do governo não impede a ação de algumas pessoas especiais (os “stalkers”)…cuja habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro é notóriaConsumidos então, pela curiosidade do local, um escritor e um cientista contratam um deles como guia lá dentro. No caminho até o “Quarto”…vão passar por rotas misteriosas…e muitas vezes…mutáveis.

Assim, numa narrativa absurda, a trama se desenrola em torno desses três personagens, quando partem para uma jornada ao local proibido, terra de ninguém, percorrendo uma região assombrosa – lama em que borbulham estranhos objetos de fantasia…debatendo, sempre que convém, temas relacionados sobretudo ao sentido da vida – tendo a fé como meio legítimo para abordar os limites humanos, como uma concepção da arte, diante de opressões políticas. – Poderíamos deste modo supor uma intenção latente em Tarkovski de desenhar críticas relacionadas à União Soviética, ao mesmo tempo em quesob uma razão frágilexplorava as camadas humanas acerca da existência e da fé transcendental.

stalker2Neste sentido, sua mensagem parece ser a incapacidade de nos omitirmos de nós mesmosde nossos medos, e profundos desejos. Ele mostra assim, uma nova ideia de fé diante do medo do … “desconhecido” — ao crer em si mesmo, e confiar no próximo … para poder, então, realizar-se plenamente.

As locações são fábricas desativadascemitérios de tanques de guerra, ruínas as mais diversas; um fosso no centro de um mundo pós-apocalíptico onde a fabulação tem um papel tão relativizado quanto reprimido…Como a ação se dá quando um raro acidente deixa boa parte do planeta inabitável…e origina uma “Zona Proibida”…em cujo centro      há uma espécie de caverna que, conforme dizem, preenche os desejos mais recônditos        de quem ali penetra — talvez por esse motivo — por se temer o ‘potencial inconsciente’ dessa realização tão profunda…seja proibida a entrada de qualquer pessoa a este local.

Porém…desde os primeiros momentos do filme…até percorrer a obra inteira, fica latente a invasão, ou sua tentativa. Os homens – com pouca ou nenhuma esperança, estão no limite da descoberta, a todos incontornável: encontrar o que há no interior de uma área proibida, dividindo passado e futuro, descrença e fé, e ainda cercada por todos os lados. Para fora do aparente futuro distópico em que o ser humano é vigiado – entre lama e poças de água, restam pedaços de ferro – onde 3 invasores…gente simples, sem heroísmo, tentam chegar ao outro lado. Nesse filme realizado nos anos 70, em pleno regime soviético, o movimento sobrepõe a missão — é como cruzar um limite…e, em certo sentido — alcançar a liberdade.

Por mais que seja uma obra de difícil acesso, Stalker dialoga com as profundas inquietações do ser humano sobre sua condição e contingênciasimprimindo,                  em cada espectador, um particular sentimento advindo de uma fiel elaboração      ordenada de “impressões sensoriais”, oriundas de um incrível poder imagético                      e narrativo desta película. (trecho1)#(trecho2)#(trecho3)#(trecho4)#(trecho5) *************************************************************************

A vitória e os segredos dos livros proibidos                                                                        A história está repleta de ataques inquisitoriais à liberdade de expressão. Mas, será que ideias políticas, religiosas ou morais, com viés particular, teriam primazia sobre a arte?

baixadosMuitas vezes… “o fogo ficou órfão — para alegria da eternidade”. Estão aí a ‘Eneida e ‘Lolita’, separadas  por mais de 20 séculos – mas irmanadas mais além de toda beleza literária pelas…”chamas infrutíferas” prometidas por seus próprios autores … e naquelas pelas quaisem vão, foram ameaçadas, por alguns daqueles autonomeadosguardiões das ideias políticas, religiosas, sociais, éticas e morais“.

Não obstanteuma aura de cinzas parece ter sido a sina de muitos livros ao longo dos 35 séculos da criação da escrita. O autor e crítico literário alemão Werner Fuld segue esse rastro vergonhoso do ser humano para relatar a história das obras que foram salvas da censura e perseguição, em “Breve historia de los libros prohibidos. Um livro de arena de todos os tempos e civilizaçõessobre os obstáculos e armadilhas à criação literária – que traz à tona a necessidade de estarmos sempre alertas para a… “perpétua tentação” – de vigilantes e inquisidores anônimoscom listas de livros proibidos… e um fósforo na mão.  A esses fogos individuais…somam-se as fogueiras que já acenderam ou quiseram acender governantes de todos os níveis e instituições, religiosas ou não, em nome do bem comum.

A 1ª queima de livros em Roma foi ordenada por Augusto no século XII a.C. com obras oraculares e proféticas…Ele queria que ninguém questionasse suas ideias políticas. – A biblioteca de Alexandria … fundada no início do século III a.C. – terminou por motivos múltiplos — incêndios bélicos… ordem de destruição por parte dos árabes… ataques de cristãos, ou terremotos. Já no século XVI a Igreja Católica publicou o “Índice de Livros Proibidos”; que teve muitas edições…até ser suprimido…em 1966…pelo papa Paulo VI. 

Desde o mesmo Augusto, que em um dia feliz salvou a ‘Eneida’…e em outro lamentável ordenou a primeira queima maciça de livros em Roma por razões religiosas, até os dias      da “Santa Inquisição”, do nazismo, regimes chinesesou conflitos nos Bálcas, Iraque e Irã, e ditaduras de plantãoa história demonstra que o que existe para além do ‘índice acusador’  é… mais cedo ou mais tarde…  a vitória definitiva da… “beleza proibida”. 

Index Librorum Prohibitorum                                                                                                Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê para resolver os dois lados de uma questão; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra…Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que seja tudo isso…do que as pessoas se preocuparem com ele”. (Fahrenheit 451)

Fahrenheit 451Existem várias classes de mortes… proibições e ressurreições literárias…por exemplo: a dos livros, dos quais, depois de criados, o próprio autor se arrepende não mais querendo lhes dar vida; a dos livros que querem viver e cujo autor busca isso a todo custo…mas um editor, ou alguém lhes nega esse direito; ou ainda…a dos livros… – que uma pessoa mais poderosa, governante ou instituição religiosa, em nome do bem de uma sociedade, procura eliminar.

“Saber ler (e escrever) é um ato de apropriação do mundo”… – como diz Alberto Manguel: “Aquele que aprende a ler algumas quantas palavras, em pouco tempo poderá ler todas as palavras”. E… como explica Fuld em seu ensaio… “Ao compreender que com uma frase se apropriou de uma parte do mundo… – não se dará por satisfeito… com uma frase apenas”.

E um brinde àqueles que não deram ouvidos aos derradeiros desejos de muitos escritores de não deixar vestígios de seus textos. Um dos primeiros foi Virgílio. Não se sabe por que, em seu testamento ele ordenou que fosse queimada a Eneida. – Por sorte… o imperador Augusto ignorou sua última vontade. Após 20 séculoso próprio Franz Kafka queimou manuscritos que não lhe agradavam. Contudo… mais tarde, o executor de seu testamento, Max Brod, não respeitou sua vontade e o mundo pôde ler ‘O castelo’ e ‘O processo’. Um caso em que se juntam no autor o impulso de eliminar primeiro, e publicar depois, é o de Vladimir Nabokov com…’Lolita’ — clássico do século XX — que… quando ainda rascunho, Nabokov quis queimar, e sua esposa Vera resgatou das chamas. Até que, em dezembro de 1953, o autor o concluiu, iniciando uma via sacra em que foi rejeitado por quatro editoras, que consideraram a obra imoral. Só conseguiu publicá-la em Paris, dois anos mais tarde, por uma editoria especializada em obras eróticas. Em 1958 nos EUA após batalha judicial.

As páginas iluminam as passagens que possibilitaram o milagre de podermos desfrutar desses textos “suspeitos”…e de escritores salvos quando balançavam à beira do abismo, além de outros que chegaram a cair, ou que foram resgatados, como “Jonas”, de dentro        da baleia. E assim, Fuld, lembra ironicamente a crítica de Ray Bradbury em Fahrenheit 451: “Não há como negar que boa parte da literatura universal estimula o…pensamento próprio. – Para o bem da paz social, todavia, tal perturbação é intolerável”. (texto base)

Sobre Cesar Pinheiro

Em 1968, estudando no colégio estadual Amaro Cavalcanti, RJ, participei de uma passeata "circular" no Largo do Machado - sendo por isso amigavelmente convidado a me retirar ao final do ano, reprovado em todas as matérias - a identificação não foi difícil, por ser o único manifestante com uma bota de gesso (pouco dias antes, havia quebrado o pé uma quadra de futebol do Aterro). Daí, concluí o ginásio e científico no colégio Zaccaria (Catete), época em que me interessei pelas coisas do céu, nas muitas viagens de férias ao interior de Friburgo/RJ (onde só se chegava de jeep). Muito influenciado por meu tio (astrônomo/filósofo amador) entrei em 1973 na Astronomia da UFRJ, onde fiquei até 1979, completando todo currículo, sem contudo obter sucesso no projeto de graduação. Com a corda no pescoço, sem emprego ou estágio, me vi pressionado a uma mudança radical, e o primeiro concurso que me apareceu (Receita Federal) é o caminho protocolar que venho seguindo desde então.
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4 respostas para “Notas de rodapé” (uma revolução literária em curso)

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